Foi numa destas noites de febre que, sem querer, olhei para o Piolhinho, de uma forma diferente. Por breves instantes, acho que o olhei com os olhos dos outros e não com estes olhos de mãe, a quem tudo parece normal... mas obviamente que não é.
Enquanto dormia olhava-o e recordava-o com um aninho. Lembrei-me dele assim, pois dormia um sono tranquilo e com uma das mãozinhas na bochecha, tal como, quando era bebé. Apesar daquele comprimento todo (1 metro e vinte e qualquer coisa), do cabelo "à rapazinho", cara de reguila e malandro, asneirento, teimoso e mau feitio, com uma personalidade "do caraças", recuei três ou quatro anos e vi o meu menino com cara de anjo e caracóis grandes. Vi-o puro, inocente e pensei:
- Passou este tempo todo e ele nunca viu. Mesmo sendo bebé era cego... Tão indefeso, tão bonito, tão tudo e... sem ver.
Naquela hora, senti que não tinha vivido nada daqueles anos. Que aquele bebé cego não tinha sido o meu bebé, que nada de mau lhe tinha acontecido, porque era bonito demais, era pequeno demais, era perfeito demais para não ver e, senti pena. Senti-me mesmo triste por aquele anjinho ser
"assim".Eu sei que ainda é muito pequeno, mas é diferente, é mais crescido. Talvez seja isso ou talvez fosse sempre assim. Sempre o vi como uma criança normal. Talvez daqui o cinco anos pense nisto outra vez e talvez sinta a mesma pena que sinto quando penso que há cinco anos atrás ele era cego, mas o que é certo, é que o vejo de uma forma tão feliz, que vou deixando o tempo correr à velocidade certa e não penso muito na cegueira dele, agora.
Só olhando para trás me apercebo e vejo tudo. Tento ser feliz no presente, desfrutando cada sorriso e cada novo passo, mesmo quando a angústia da escuridão dele me aperta. Consigo ignorar aquela pontinha de dor, que por vezes bate à porta do meu coração e mandá-la embora. Só que às vezes a razão fala muito alto, chega mesmo a gritar e mostra-me o mundo de uma outra forma. Não acredito que seja a forma mais feliz, nem sei tão pouco se será a mais correcta, mas sei que é a mais verdadeira.
E, naquela noite, vi-o com os olhos daqueles que não o conhecem e o olham com pena, diferença e curiosidade.
Uns olhos que detestava (e ainda detesto, não é por os compreender que os vou admirar) por serem tão mesquinhos, que se fixam nos olhos do meu menino e não os largam. Detesto que olhem assim para ele, detesto que digam "aquele menino é ceguinho", dói-me muito, muito, muito e eles não percebem... mas naquela noite eu percebi esses olhos. Não o olham por mal, falam sem pensar que me custa ouvir; mas será que eu não fazia o mesmo?
Se eu senti pena por ele ser um bebé cego, tenho o dever de perceber as reacções dos "outros", mesmo sentido o coração apertadinho e uma vontade imensa de fugir daquele lugar.