quarta-feira, junho 28, 2006

Tudo num olhar

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"Na noite em que nasceram as minhas filhas, nasceram as minhas filhas dentro de mim. Durante um momento, que eu quis se prolongasse uma eternidade, uma das minhas filhas olhou para mim. Não foi de repente. Nem a cabeça mexeu. Foi devagar. Abriu os olhos. E olhou para mim. Fixou-me. Só isso. Não estava a pedir nada. Não dava ideia de segurança ou de insegurança, de tristeza ou felicidade. Estava simplesmente a olhar.
Foi na Inglaterra, em Janeiro de 1981. Esperei uma hora junto das duas incabadoras, estudando as minhas filhas, mais por amor do que por curiosidade, na esperança de uma delas abrir outra vez os olhos. Não tinha percebido bem. E pedia ao vidro: só mais uma vez. Senti-me tentado a abrir uma das portinholas proibidas, vigiadas por uma enfermeira antipática, para apertar levemente uma perna, a parte mais gorducha. Para quê? Para acordar uma das minhas raparigas, para que me fizesse mais um bocadinho de companhia naquele dia tão diferente do resto da minha vida. Não mexi nas portinholas. Resisti. Mas fui expulso pela enfermeira, no momento em que eu batia no vidro, egoísta, fascinado, um pai a fazer a sua primeira tropelia, a pôr o prazer dele à frente do bem-estar das suas filhas. Eram 3 da manhã. Fui passear nos jardins da maternidade. À luz de candeeiros amarelos, a neve tinha um aspecto falsificado, mas era bonito. (...) Toda a noite andei com aquele olhar. Dormi com ele como se estivesse deitado ao meu lado. Foi ele que me adormeceu. Adormeci quando finalmente o compreendi. (...) Aquele abrir de olhos, tão fixo e tão lento, que só muito depois se repetiu, era apenas o cuidado que tem qualquer menina de se inteirar. No princípio da vida. Só para saber. «Então és tu.» (...)

Miguel Esteves Cardoso

Foi na noite de segunda-feira, que me leram em voz alta esta crónica do Miguel. Sei que a intenção não era referir o olhar daquela menina, mas sim o facto daquela maravilhosa aventura de ser pai.
Chorei lágrimas vindas directamente do coração, aliás, como toda a noite, uma vez que tinha vindo de dois exames onde o objectivo principal, essencial e fundamental era passar nos dois e, um deles não correu tão bem como isso (vou hoje receber a nota) e nessa mesma noite o episódio daquela série fantástica, perfeita e surreal dos "Sete Palmos de Terra" foi de cortar o coração, pois o Nate morreu e, apesar de ser um indivíduo nada bem comportado para com a mulher, uma vez que a traiu e morreu logo após a traição (nem vale a pena comentar, não é? :) não merecia ter morrido. Adorava o papel do Nate, adorava o Nate e fiquei realmente triste com aquele episódio e... chorei, chorei...
Enquanto ouvia a leitura desta crónica, leitura essa pura e simplesmente perfeita, cumprindo todas as regras de pontuação, salientando cada ponto forte, arrepiando toda a alma e coração desta mãe cujo pensamento não podia estar mais embrenhado naquele olhar imaginário. Ele lia-me a aventura daquele pai na primeira noite de vida das filhas e eu só ouvia aquele doce olhar. Senti o que nunca tinha sentido: o meu filho a olhar para mim! Consegui imaginar um olhar vindo dele.
Gostava tanto de ter uns segundos assim; uns segundos que se prolongassem por toda a eternidade. Gostava de sentir TUDO num simples olhar, num simples gesto à distância onde ele soubesse e dissesse: «Então és tu.»