Sem coragem para mais
Há quem diga que é quando o sorriso esmurece e a alma se deprime, que se escreve melhor, que o sentimento deixa-se transparecer para o papel de uma forma mais clara e objectiva.
Talvez, porque hoje me sinta assim, talvez porque ontem o suspiro me fez chorar, talvez porque às vezes caia na realidade da minha vida e não consiga encarar os problemas de frente e me esconda num canto qualquer com a esperança de não ser encontrada, porque às vezes não consigo transformar a dor num sorriso, porque tenho pena de não me aguentar, sempre, com aquela armadura de mãe guerreira que nada lhe afecta e consegue, sempre, dar a volta por cima sem desabar, por ser cobarde ao ponto de me refugiar sempre na mesma dor e não ter coragem (ou ter medo) de pensar que há mais assuntos que me atormentam sem ser o assunto do que os olhos do meu menino não vêem, apetece-me mais que nunca escrever e... chorar, sobretudo chorar...
Ontem, aproveitei a cunha da memória amarga do dia 10 de Fevereiro de 2000, para me refugiar e chorar à vontade. É nisto que me acho cobarde, porque ponho sempre as culpas num sofrimento permanente, mas suave, que encobre tudo o resto... tanto que nem coragem tenho para falar no resto.
" 7 de Fevereiro de 2000 - Segunda-feira
Tenho 17 anos e uma bagagem que não inveja ninguém.
Descobriram qualquer coisinha nos olhinhos do meu menino, mas nada que uns óculos, mais tarde, não resolvam, segundo a médica que o acompanha.
Amanhã vamos ao Hospital de S. José, nada de complicado, mas é melhor fazer já o que há para fazer, não vá alguma coisa correr mal.
8 de Fevereiro de 2000 - Terça-feira
Pouco passa das 8 da manhã e já fiz cerca de 90 km para chegar até aqui. Estou no Metro da Cidade Universitária. Transformou-se, de repente, num mundo estranho, esta minha vida e aqui estou eu, para mais um dia igual a tantos outros. O de hoje, talvez não seja tão igual, vamos até S. José, para o meu pequenino ser visto por um outro oftalmologista, mas não estou nada preocupada, pelo menos foi isso que me foi transmitido, está tudo bem é só uma medida de precaução.
Estamos na ambulância. Eu, tu na tua enorme casinha envidraçada e uma enfermeira.
Toda a gente repara em nós, aliás em ti, por seres um bebé lindo, tão pequenino e por seres parecido com o caracol, por andares com a tua casinha atrás... Sinto-me orgulhosa!
Entramos numa sala pequenina, onde o médico te observou em silêncio.
Estava tão longe do problema que se avizinhava, que mais descontraida, não podia estar.
Mas depressa a confiança passou e o medo inexperiente começou a palpitar, com o bater do coração. Afinal havia qualquer coisa de grave e tinha de ser operado já.
Foi o caos. Mas afinal o que é que se passa?
10 de Fevereiro de 2000 - Quinta-feira
Hoje, não posso ir com o pequenino na ambulância. Voltou aos cuidados intensivos, pois teve que levar anestesia e lá voltou para o seu amigo ventilador. Hoje vai no I.N.E.M. e não há lugar para a mãe.
Apanho um taxi e vou atrás.
Faço-me de forte, enquanto espero na sala de espera. Olho para uma Santinha, que nem sei o nome, mas rezo baixinho.
Esperava que aquela operação levasse o tempo suficiente para tratar que nos atormentava, mas nem vinte minutos levou.
O médico chamou-me. Entrei e foi quando me disse que o caso não era para ele. Apenas mexeu num olho e que no outro, pouco havia a fazer. O melhor, era passar a ser seguido nos Hospitais da Universidade de Coimbra.
Bem... mas o que é que se passa nesta minha cabeça? Neste meu coração?
Estou completamente desesperada, não sei para onde ir. Não consigo pensar, não me deixam vê-lo... Quero chorar mas faço um esforço tremendo para não o fazer.
O que é que se passa? O que é que se passa? O que é que se passa?
Só quero ouvir uma palavra amiga, que me diga que não se passa nada. Na minha cabeça há milhares de perguntas, que recuso simplesmente a fazê-las, porque não quero ouvir a resposta.
Apanho outro taxi, que me leva de novo para o nosso covil, para Santa Maria.
Chegaste primeiro que eu.
Olho-te pelo vidro da porta. Nem coragem tenho para entrar de novo, naquela sala horrorosa, cheia de monitores onde se lêem os batimentos cardíacos e respiratórios. Aqueles alarmes parecem gritos de dor de todos os bebés que ali estão. Estás de novo ligado ao ventilador, o efeito da anestesia ainda não passou. Estás tão indefeso. Essas vendas que tens nos olhos tapam-te o rosto de anjo. Só quero desaparecer. Adormecer e acordar amanhã de manhã e ter um dia normal, onde nada disto se passou, nem se passará.
De lágrimas em fio, encosto a testa ao vidro e limito-me a olhar-te em silêncio.
Há alguém que me vê, a enfermeira chefe. Dirige-se a mim e em forma de consolo diz-me para não ficar assim, que afinal ainda havia esperança para um olho.
O quê? Mas o quê que esta bruxa me está para aqui a dizer? Ela está a dizer que o meu filho está cego de um olho? Que só vai ver de um olho?
Mas afinal, não era nada de grave, nada que uns óculos não resolvessem e agora dizem-me isto?
Tantas perguntas de revolta numa cabeça de menina, que fazia e dava o seu melhor.
Foi duro; ai se foi...
Acho que foi aí que me comecei a aperceber da gravidade da situação.
Durante a recuperação da anestesia, teve algumas paragens respiratórias, que eram tipo facadas que me davam na alma, mas conseguiu superar.
E foi mais ou menos assim que soube que o meu pequenino era cego.
Davam-me esperança para o olho esquerdo, mas no fundo, acho que eram esperanças de papel de seda cor de rosa, para vestir as bonecas que cedo deixei. Talvez fosse feito o melhor por ele, quero pensar assim, para não custar tanto, mas se o que se passou a 10 de Fevereiro de 2000, se passasse a 10 de Dezembro de 1999... talvez...
E hoje, quando penso nas palavras daquela senhora maravilhosa que me veio dar colo na altura que mais precisava e a quem chamei nomes feios, em silêncio... quando penso... quem me dera que ela tivesse razão, na altura em que aquela frase de espinhos se ouviu... quem me dera que ele visse de um olho."
E ontem, aproveitei esta boleia para chorar à vontade...